A minha Brasiliana

Tentei evitar, não consegui. A escrita não é o meu meio, mas também pittura é cosa mentale como dizia Leonardo e tudo vem mesmo misturado, portanto vou falar um pouco, assim como uma reportagem. É que não resisto e me comovo com datas: há 20 anos fiz minha primeira mostra individual. Minha buliçosa alma naïf me leva assim a dizer umas coisinhas.

Como tudo vem mesmo misturado, há algum tempo comecei a pensar sobre o tanto de brasileiro que tinha em mim, desde tempos mais remotos, quando ficava inundado naquelas imagens renascentistas todas, da Enciclopédia Trópico, presente do meu “itálico” pai. Já a minha “recôncava” mãe adorava festas juninas, herança da tradição interiorana, e as fazia a caráter. No meio disso tudo tinha um quintal com um jardim. Nele mangas, abacates e hibiscos conviviam alegremente com dálias, lírios e, pasmem, um pessegueiro em plena Bahia.

Foi só na adolescência que tive contato com essas coisas baianas, candomblé, samba de roda, festa de largo, muito pela mão de Zefinha, uma moça que trabalhava em casa. Mas minha alma, embora mestiça, seguiu construindo seu imaginário de modo abrangente, sem focos específicos.

Desenhando por compulsão acabei virando arquiteto e fui parar na Itália, pesquisando origens e possibilidades. Pude enfim ver de perto a pintura que antes me fazia transcender, mesmo naquelas estampas mal impressas da tal enciclopédia.

Bebi da fonte e radicalizei no desenho, mas também não tive como escapar do contato com o que tinha de contemporâneo na arte. Acabei aprendendo também a romper cânones e paradigmas. Afinal, a curiosidade matou o gato…

Voltei ávido, dois anos depois, e com a certeza de que, para mim, não tinha mais saída. Pouco depois juntei uns desenhos e mostrei, pela primeira vez, numa individual na Aliança Francesa. Era 1983.

Muita gente gostou, mas foi Matilde Matos quem apontou qualidades e contemporaneidades. Segui confiante em frente. Divertia-me o comentário comum de que eu ia em muitas direções diferentes. Pois quanto mais falavam, mais eu ia, na certeza de que o bom caminho se faz assim mesmo, experimentando, gastando papel, técnica, instrumento, tema, linguagem etc. Depois o tempo se encarrega de te conduzir para o caminho da não-fórmula, do não-clichê e te dá o que os artistas vivem tentando conquistar: estilo.

Bom, o que a maturidade te leva de vista, força muscular, disposição física, te devolve em manha, savoir-faire, juízo crítico e todas essas coisas de que se precisa para se estabelecer, enfim, uma língua própria. Foi nisso que me fiei para finalmente afrontar a minha alma brasileira. Mas que cavolo de brasileiro estava morando aqui dentro, esse tempo todo, e com que imaginário ele lidava? Nunca fiz antes uma exposição temática.

Ia simplesmente pintando e, lá pelas tantas, descobria uma idéia que acabava agrupando aquelas telas. Sempre funcionou assim, sem maiores preocupações. Se havia um leitmotiv era sempre descoberto a posteriori. Mas desta vez não. Decidi pelo brasileiro e, num plano mental, pari mais de quarenta imagens. Jorrou de tudo, do ancestral ao quotidiano, da idéia mais banal ao viés mais inusitado. Descobri que todo esse Brasil estava bem aqui, embora retraído, tímido, balbuciante. Na depuração final, usei tudo o que aprendi em arte para fazer esses vinte quadros, incluindo dois dípticos, só para revelar essa paisagem distante, mas estruturante da minha alma mulata.

Terá valido a pena continuar pintando, nesses vinte anos? Tanto faz. Para mim não foi questão de escolha, mas a falta dela. Teria feito tudo de novo.

Chico Mazzoni • Fevereiro – 2003